domingo, 20 de agosto de 2006

Di Tullio


Em 1.961, vim de Santos para São Paulo para fazer o restante do Científico (que era como se chamava o período de três anos que se seguia ao Ginásio, de quatro anos) mas – principalmente – para fazer cursinho pra engenharia, no curso Di Tullio.
O professor Mauro de Oliveira César, que além de dar aulas no Di Tullio também era professor da Faculdade de Engenharia de São Carlos, junto com minha irmã, me arrumara bolsa integral. Isso, mesmo sendo eu ainda aluno do segundo científico. Penso que fui eu que inventei essa história de treineiro. Essa garotada que presta vestibular ainda no final do segundo colegial, só pra treinar. Naquele tempo não era possível fazer o vestibular sem concluir o colegial. Mas fui fazer cursinho porque sentia que o colegial não estava me dando formação adequada. O Colégio Canadá, de Santos, já não era o mesmo de tempos passados.
Na década de 60, o cursinho por excelência era o Anglo Latino. Das 360 vagas na Escola Politécnica, quase 300 eram ocupadas por alunos formados lá. Mas o Curso Di Tullio tinha um papel qualitativo importante nessa história de vestibular para engenharia.
O professor Di Tullio era um italiano baixinho, de nariz batatudo, um pouco corcunda. Por ser de esquerda numa Itália dominada pelo fascismo na Segunda Guerra, fugiu. Parece ter sido um raríssimo caso de alguém que fugiu PARA a Sibéria. Em geral, as pessoas fugiam DA Sibéria.
Não sei como, nem por quais motivações, Di Tullio acabou por migrar para o Brasil como vendedor de vinhos, apesar de ser um matemático de alto nível.
Aqui, nesta terra de burocratas, tentou validar seus títulos acadêmicos para poder lecionar na USP. Exigiram dele que prestasse exames de Geografia e de História do Brasil.
Mandou tudo às favas e começou a dar aulas preparatórias para o vestibular de Engenharia para um pequeno grupo de umas dez pessoas. Ele ministrava todas as matérias menos Química, que era ensinada por uma professora também italiana, cujo nome agora me escapa.
O estupendo êxito de seus parcos alunos no vestibular da POLI (o ITA nunca foi o seu forte) levou-o a montar o cursinho, trazendo para ajudá-lo alguns de seus primeiros alunos.
Ele reservou para si as aulas de Álgebra. E foi nesses termos que conheci essa figura inigualável.
Comecei por entender para que servia aquela espécie de estribo na parte inferior do quadro negro. Certo, servia para colocar giz e apagador. Mas a função primordial era amparar o professor Di Tullio nos dias em que havia tomado um pouco mais de vinho ao almoço, seguido de algum cognac.
Ele detestava ministrar as matérias do programa do vestibular.
Logo de cara avisava: daria aulas extras, sem custo algum, ao final do horário normal de aulas, para quem se interessasse. Para ensinar tópicos da Matemática que eram do interesse dele.
Formou-se um pequeno grupo, do qual – óbvio – eu fazia parte, para assistir às aulas realmente inspiradas do extraordinário mestre.
Lembro-me, só pra dar uma palhinha, de um início de uma série de aulas sobre Teoria das Grandezas. Di Tullio começava por afirmar que Grandeza era conceito primitivo, não admitia definição.
Criticava, em seu português carregado de sotaque:
- Já vi livros que definem grandeza: grandessa é tudo aquilo suscetível de aumentar e diminuir. Ba. Conheço cossas suscetíveis de aumentar e de diminuir e que no som grandessa.
E mostrava o rosto iluminado por uma risada irônica, infantilmente malandra (ou malandramente infantil, sei lá)
Di Tullio tinha um apartamento no Embaré, em Santos. Passava lá suas férias.
Como minha mãe ainda morava lá, eu também ia pra Santos nas férias. Uma vez levei comigo meu amigo (até hoje) Brandão, pra passarmos lá alguns dias.
Um dia, lá pelas nove da manhã, fomos tomar café da manhã em um bar no Embaré. Entramos e pedimos dois Toddys. Não percebemos que o professor Di Tullio estava sentado ali ao lado, a tomar seu cognac matinal.
Ouvimos, depois de pedirmos nossos chocolates:
- Má quê. Quem toma chocolate é viado! Tem de tomar cognac!
- Mas professor, cognac às nove da manhã?
Di Tullio era fantástico até quando manifestava seus preconceitos.
Aprendemos, então, a rotina do mestre. Tomava um cognac logo cedo, entrava no mar e nadava até a Ponta da Praia, junto ao ancoradouro dos Práticos (alguns quilômetros). Lá já havia um taxista conhecido que o recolhia todo molhado e o levava de volta ao Embaré.
Do alto de nossa juventude, tentamos acompanhá-lo nessa empreitada. Desistimos no meio do caminho.
Quando saiu o resultado de nosso vestibular na POLI, corri ao cursinho pra saber se havia passado. Encontrei o professor Di Tullio, com seu sorriso maroto, sentado em frente a uma lista de aprovados.
Nem perguntei nada. Olhei-o interrogativamente.
E ele:
- Má quê papelão!
Pensei logo: bombei.
Ele prosseguiu:
- Tinha de ficar em 24º lugar?!?

3 comentários:

relatar atividades culturais e reuniões da Academia de Letras José de Alencar - ALJA disse...

Que maravilha poder ler um artigo do Cursinho Di Túllio, e os comentários sobre o mestre Di Túllio, perfeitos, parabéns.

Anónimo disse...

Fiz o cursinho Di Tullio em 1955. De fato o professor Di Tullio era excepcional. Com ele aprendi muita matematica.
Entrei na POLI e me formei em engenharia civil. Meu nome e Edmundo Rossi Cuppoloni.

Reginaldo Appa disse...

Fiz o Cursinho Do Tullio em 1966. Entrei na Poli e me formei em 1971. Não sabia da história de vida do professor! Saudades das "incónhitas"...